Um Passo Radical
"E se teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti" (Mateus 5:29). Mateus 5:29-30 contém duas das mais chocantes sentenças dos Evangelhos. Em palavras brutalmente francas Jesus fala das ásperas alternativas abertas a um homem confrontado com a aniquilação total, por causa do perigo apresentado por uma parte de seu corpo de inestimável valor. 
Aqui a ameaça reside no olho direito e na mão direita. Mais tarde, em outro contexto, Jesus repete sua ilustração, acrescentando o "pé" (Mateus 18:8-9; Marcos 9:43-47).
A linguagem pode ser chocante, mas a situação não é forçada. Nos dias da medicina mais primitiva, muito membro gangrenoso foi amputado por cirurgiões para salvar a vida do paciente, e a medicina moderna ainda aconselhará a mesma traumática cirurgia, quando uma parte do corpo ameaçar a vida do todo. Sabe-se de homens que fizeram em si mesmos esta cirurgia, quando um braço ou perna, preso numa máquina, estava arrastando-os para a morte. É um passo radical, mas eminentemente sensato.

Estudos Bíblicos -Jesus abre o coração do seu discurso sobre a verdadeira justiça


Esta passagem é o lugar onde aqueles que afirmam firmemente sua confiança na interpretação literal de todas as Escrituras terão que pensar bem. Não pode haver nenhuma questão quanto a que Jesus constroi sua mensagem sobre uma verdade do mundo da carne, mas é evidente pelo contexto que sua linguagem tem aplicação ao mundo do espírito (se o olho direito fosse extirpado o pecador ainda poderia cobiçar tão efetivamente só com o esquerdo). 

Resultado de imagem para palavra de deus Nestas penosas palavras, a verdadeira profundidade da mudança que o Filho de Deus exige encontra sua dramática expressão. No mesmo tom, Jesus fala de nossa aproximação a ele como uma crucificação (Mateus 16:24-25; veja Gálatas 2:20) e Paulo provê um comentário sobre Mateus 5:29-30, com suas palavras aos Colossenses: "Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno" (3:5).

Ainda que o Senhor não esteja, aqui, falando de mutilação física, que poderia ser totalmente ineficiente contra os impulsos do coração, não deveríamos presumir que a intenção figurativa de suas palavras as torne menos intensamente penosas. Há "partes" de nós S afetos, hábitos, atitudes, valores, relacionamentos S que se tornaram, pelo longo cultivo, partes tão íntimas de nossa personalidade que a sua remoção fará a extirpação de um olho ou mão parecer muito moderada. Muitos de nós passaram longo tempo aprendendo como ser egoístas e concupiscentes. 


Não deveríamos esperar que o fim destas coisas viesse sem trauma. Gritos de angústia podem levantar-se de algum lugar dentro de nós quando em penitência aplicarmos o escalpelo do evangelho. Mas algumas dores são boas dores. ". . .pois aquele que sofreu na carne deixou o pecado" (1 Pedro 4:1). Podemos escolher evitar este sofrimento, mas nossas queridas concupiscências nos destruirão como uma terrível gangrena da alma.

A natureza radical e decisiva desta renúncia é ressaltada pela instrução de Jesus não somente para arrancar o olho ou cortar fora o membro ofensor, mas para lançá-lo fora. A separação tem que ser absoluta e final, não gradual. Esta é uma solução radical mas deveria ser recebida com alegria, em vez de horror. 


Qual o homem que tem uma doença que vai resultar com certeza na morte não se regozijaria ao ouvir que o sacrifício de uma parte de seu corpo, ainda que cara, pudesse salvar sua vida? Até mesmo as minúcias da descrição da dor insuportável que sentiria não poderiam roubar a este homem libertado sua sensação de alívio. A única razão pela qual não recebemos com felicidade uma mensagem de importância similar para nossas almas é que ainda não compreendemos a extensão de nosso último prejuízo sem ela. "Que dará o homem em troca da sua alma?"

Ainda que Jesus pudesse ter dito estas impressionantes palavras com bom propósito a qualquer tempo durante este trecho de seu discurso, ele escolheu emiti-las em conexão com a tentação da concupiscência e do adultério. Por quê? Estaríamos errados em concluir que ele assim fez porque os cidadãos do reino não conhecerão desafio mais radical à pureza de seus corações do que em matéria de desejo sensual? "Como têm caído os poderosos!". Davi, que não cedia nenhum terreno em outros campos de batalha, foi abatido facilmente pelo engodo sutil da esposa de outro homem. 


Muito homem poderoso tem sido reduzido a geléia pela mesma provação. Seremos loucos consumados se não tratarmos esta tentação com a máxima gravidade e andarmos em sua presença com suplicante circunspecção. Na face da dura advertência do Senhor, continuamos a nos admirar da descuidada familiaridade com que alguns discípulos casados tratam os do sexo oposto, e as armadilhas circunstanciais a que eles imprudentemente se expõem. Ainda enquanto muitas igrejas estejam se passando de um célebre caso de adultério para outro, parecemos às vezes não termos aprendido nada. 

O contexto desta mesma metáfora, usada pelo Senhor na última parte de Mateus (18:8-9) e em Marcos (9:43-47), sugere que um possível significado para o "olho" e a "mão" ofensores é uma ocasião para tropeço. Se é este o caso, estamos sendo intimados a, não somente, remover o ato pecaminoso (quer adultério físico ou adultério do coração), mas quaisquer circunstâncias ou relacionamentos que poderiam facilmente levar a isso. Paulo o apresenta francamente: "Fugi da impureza!" (1 Coríntios 6:18). Como os cristãos desta geração necessitam desesperadamente de ouvir!



16. "Aquele que Repudiar sua Mulher"


"Aquele que repudiar sua mulher" (Mateus 5:31). O assunto do divórcio pode encher de horror o coração do pregador. Mais de dois terços dos pregadores das maiores denominações protestantes da América, recentemente admitiram jamais ter falado sobre este assunto. A questão do divórcio (e novo casamento) toca as vidas de homens e mulheres intimamente e, muitas vezes, dolorosamente.


 Entretanto, aqueles que entram para o reino não devem esperar que qualquer parte de suas vidas escapará da influência do Rei; nem que eles deveriam desejar isso, uma vez que seus mandamentos não são arbitrários (1 João 5:3) mas são sempre pelo nosso bem (Deuteronômio 6:24). Ainda que este ensinamento possa ser angustiante para nós, não há nenhum lugar onde o verdadeiro discípulo possa esconder-se de suas implicações.

Em Mateus 5:31-32, Jesus continua sua discussão do casamento e do princípio do amor, que ele iniciou no versículo 27.

"Também foi dito: Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio" (Mateus 5:31). Esta tradição farisaica que o Senhor cita é baseada em uma distorção de Deuteronômio 24:1-4, a primeira parte do qual diz: "Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se ela não for agradável aos seus olhos, por ter ele achado cousa indecente nela, e se ele lhe lavrar um termo de divórcio, e lho der na mão e a despedir de casa". 


O significado destes versículos tinha sido acaloradamente disputado entre as escolas rabínicas. Shammai, insistindo numa causa criminal e legal para o divórcio, ressaltou as palavras "cousa indecente" e limitou-a ao adultério. Hillel reforçou as palavras "não for agradável aos seus olhos" e permitiu o divórcio por qualquer coisa que desagradasse ao esposo. Rabi Akiba foi mais além, permitindo o divórcio se o esposo simplesmente encontrasse uma esposa mais atraente.

De outra informação de que dispomos no Novo Testamento, é evidente que os fariseus compartilhavam dos mesmos pontos de vista frouxos de Hillel, se não outros piores (Mateus 19:3,7) e estavam muito menos interessados no motivo para o divórcio e suas ímpias consequências para a vítima, do que em seguir as formalidades adequadas. A obsessão deles com delicadezas legais ao completo desinteresse do princípio moral é de novo revelada. Os fariseus viam o divórcio como um direito, e entenderam as palavras de Moisés como um mandamento (Mateus 19:7) e não como uma concessão permissiva. Assim fazendo, eles tinham compreendido totalmente errado a lei e seu propósito.

A atitude de Deus para com o divórcio foi abundantemente esclarecida no Velho Testamento, cujo cânon tinha sido encerrado com as sonoras palavras, "porque o Senhor Deus de Israel diz que odeia o repúdio" (Malaquias 2:16). Consistentes com este sentimento divino, as palavras de Deuteronômio 24:1-4 pretendiam limitar o divórcio, já vicejante, e não introduzi-lo e encorajá-lo. Jesus descreve o ensinamento da lei sobre o divórcio como uma concessão à dureza de coração de Israel (Mateus 19:8); não certamente uma "dureza" de rebelião teimosa, que teria sido intolerável (Hebreus 3:7-11), mas conduzida do retardamento espiritual (Marcos 6:52). A lei exercia sua restrição sobre o divórcio de três modos. Ela limitava o divórcio a certas causas.


 (O contraste de Jesus, de seu próprio ensinamento do divórcio somente por fornicação com o da lei, indicaria que Moisés permitiu mais de uma razão para o divórcio, Mateus 19:7-9). Ela requeria que uma certidão de divórcio fosse dada à esposa (usualmente em presença de duas testemunhas [Mateus 1:19], contendo as palavras "Vejam! estás livre para desposar qualquer homem"). E dava um argumento compulsório contra a ação apressada e imoderada ao proibir o esposo de jamais voltar a tomar como esposa sua companheira divorciada (se ela tivesse casado novamente).

"Eu, porém, vos digo: Qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera" (Mateus 5:32). Em sua resposta à falsa interpretação farisáica sobre o divórcio, Jesus está principalmente interessado no princípio e não no procedimento. Qualquer homem que expulsa sua esposa fiel age sem amor e tem que compartilhar a culpa pelo adultério dela (assumindo-se que ela tenha casado novamente). A única exceção é o divórcio por causa da fornicação, que excluiria seu esposo fazendo dela o que ela já teria se tornado. Neste contexto, parece evidente que ainda que "relações sexuais ilícitas" (porneia) compreenda união sexual ilícita tanto no casamento como fora dele, o Senhor a usa aqui para o pecado dentro da aliança do casamento e não o pecado antes dele.

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A disposição corrente de alguns a justificar o divórcio por qualquer razão, se não houver novo casamento, me leva a ressaltar que o pecado do qual Jesus falou aqui reside no divórcio, não no novo casamento. Tal divórcio é errado em três pontos. É errado porque não mostra amor pelo companheiro. É errado porque poderia levar o companheiro divorciado a uma relação condenável. E é errada porque poderia envolver no adultério outra pessoa, antes inocente. 


A isto sentimo-nos compelidos a acrescentar que, mesmo em casos em que a fornicação ocorreu, o amor redentor do reino, pareceria aconselhar misericórdia e reconciliação, quando possível. O divórcio nunca foi um mandamento. O amor é.

Finalmente, é evidente que Jesus, em sua resposta aos fariseus, viajou além do Deuteronômio, mesmo quando corretamente entendido, e afirmou a lei do reino do céu, que se apoia na vontade de Deus "desde o princípio" (Mateus 19:8-9). A lei de Moisés teria permitido à mulher divorciada casar-se de novo; a lei do reino não permite.


17. Não Juramentos, Mas Verdade

Em Mateus 5:33-37, Jesus apresenta a quarta de suas seis antíteses, que confrontam as perversões farisaicas da lei com a justiça do reino do céu. As exatas palavras do ensinamento tradicional que Jesus cita (versículo 33) não são encontradas em nenhum lugar no Velho Testamento, mas foram criadas de afirmações como aquela de Levítico 19:12: ". . . nem jurareis falso pelo meu nome, pois profanaríeis o nome do vosso Deus" (veja Êxodo 20:17; Deuteronômio 6:11; Números 30:2).

A abordagem dos juramentos, pela lei, era semelhante a sua abordagem do divórcio. A aliança Mosaica não ordenou o divórcio, mas procurava regular e restringir o que já era prevalente. Em correspondência, a lei não originou os juramentos nem ordenou a Israel que jurasse, mas indicou que quaisquer juramentos ditos teriam que ser em nome de Deus (Deuteronômio 6:13; 10:20) e não poderiam ser falsos (Levítico 19:12; Zacarias 8:17; Malaquias 3:5). 


Mas estas restrições nunca foram para serem entendidas como permissões para mentir, quando não sob juramento. O ódio de Deus a todas as mentiras é mostrado muito claramente no Velho Testamento (Provérbios 6:17; 12:22).

Infelizmente, os fariseus, em vez de encontrar nos regulamentos de Deus concernentes ao juramento um apelo à veracidade constante, acharam neles uma brecha para desengano. O ponto principal de sua tradição era: "Não jure falso quando o nome de Deus estiver envolvido". "Para com o Senhor" era a frase usada na sua perversão. 


Para facilitar sua desonestidade, os fariseus faziam distinções sofísticas entre juramentos obrigatórios e não obrigatórios (Mateus 23:16-22). Estes hipócritas tinham uma delicada preocupação em evitar o perjúrio (como eles o definiam) mas nenhum compromisso com a honestidade, a veracidade e o amor ao próximo.

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É uma das tragédias desta parte do sermão que tem sido reduzida a pouco mais do que o lugar da batalha sobre a tolerância dos juramentos judiciais. O mal que Jesus ataca em sua proibição de jurar (versículo 34) não são os juramentos, mas a fraude. Ele varre fora os vãos juramentos dos fariseus, com suas sutilezas enganosas, ao observar que não há nada pelo que eles possam jurar (o céu, a terra, Jerusalém, suas próprias cabeças) que não esteja, no final, ligado diretamente a Deus e ao seu poder (versículos 34-36; 23:16-22). 


O Senhor está simplesmente ressaltando a verdade essencial que toda palavra que emitamos está "diante de Deus" e sujeita ao julgamento divino (Mateus 12:36-37). Um simples e enfático "sim" ou "não" coloca os homens sob não menor obrigação de dizer a verdade e honrar seus compromissos do que o mais rígido juramento. Os juramentos nunca tiveram a intenção de aumentar a obrigação do jurador de dizer a verdade (que já existia) mas a dar maior segurança àqueles que os recebiam (Hebreus 6:13-18).

Quais são as lições práticas a aprender de tudo isto? Alguns têm visto aqui uma sólida advertência contra a profanidade. Uma boa lição sobre este assunto seria, certamente, oportuna. Somos, sem dúvida, uma geração profana. 


Manchados com pequenas blasfêmias e procurando outras maiores, tratamos com urbano divertimento o sacrílego espezinhar de palavras como Deus, Cristo, céu, inferno, salvação e danação. Nosso hábito de pronunciar impensadamente nomes santos nos tem custado nosso senso de reverência e com ele nosso senso de humanidade. Mas a profanidade não é aqui a preocupação fundamental de nosso Senhor. Sua preocupação é com a honestidade, total e absoluta honestidade.

O que devemos a nosso irmão e nosso próximo é a verdade, em todas as nossas palavras, ou palavra nenhuma. Há muitas tentações para mentir e para ser infiel. Ódio, culpa e cupidez nos levam a esticar a verdade, até que ela se rompe. Egoísmo ou concupiscência nos instigam a quebrar os votos solenes do casamento. Irreflexão nos incita a esquecer, como sem importância, as promessas do dia-a-dia que fazemos aos outros.


 Alguns cristãos denegriram sua integridade por acusações sem fundamento e declarações sem apoio. Outros desgastaram sua honra por compromissos não cumpridos. Tal procedimento é inaceitável em um cidadão do reino. Servimos a um Deus que não pode mentir (Tito 2:1) e temos que levar a seu serviço uma honestidade e uma veracidade transparentes (Colossenses 3:9; Efésios 4:15,25).

Não devemos, porém, encerrar este estudo sem tratar de uma questão óbvia e não resolvida. Pelas palavras "De modo algum jureis" não nos proibiu Jesus qualquer tipo de juramento? Faz muito tempo, em meu coração, uma pronta aceitação de tal conclusão, mas o amplo contexto do Novo Testamento levanta algumas questões sérias sobre ela. Não estamos tão perturbados pelo reconhecimento que Deus (Atos 2:30; Hebreus 6:17; 7:20-21), seu Filho (Mateus 26:63-64) e seus anjos (Apocalipse 10:5-6) fizeram juramentos, como estamos pelo fato que as epístolas de Paulo estão bem salpicadas de expressões semelhantes a juramentos, que não podemos explicar de nenhum outro modo (Romanos 1:9; 9:1; 2 Coríntios 1:23; 11:31; Gálatas 1:20; Filipenses 1:8; et al.).

Como podemos conciliar a clara prática de Paulo com a proibição de Jesus? Primeiro, cremos, por reconhecer que algumas afirmações absolutas mostram-se não o serem quando as Escrituras são consideradas no todo (Marcos 10:11-12 e Mateus 19:9; Mateus 5:42 e 2 Tessalonicenses 3:10). 


E então, verificando que Jesus está tratando, neste contexto, dos juramentos mentirosos dos fariseus e não dos juramentos solenes daqueles que diriam a verdade em quaisquer circunstâncias, mas acham que às vezes outros necessitam de especial confirmação. Cada cristão tem que pesar esta matéria cuidadosamente, lembrando-se sempre que ele não é compelido a jurar, mas que é sempre obrigado a dizer a verdade.


18. Uma Idéia cujo Tempo não Chegou

Se Jesus estava tentando formular princípios éticos que apanhassem o espírito de sua época, ele certamente foi um fracasso. Seus ensinamentos foram estranhos e extemporâneos e agitaram animosidade mesmo na nação de Israel. Mas o Filho de Deus sempre soube que "o tempo" para seu ensinamento jamais viria na historia. Como ele uma vez disse aos seus ainda incrédulos irmãos: "O meu tempo ainda não chegou, mas o vosso sempre está presente. Não pode o mundo odiar-vos, mas a mim me odeia, porque eu dou testemunho a seu respeito de que as suas obras são más" (João 7:6-7).

Os ensinamentos éticos de Jesus não são menos estranhos a nossa própria época, e não há expressão mais radical da justiça do reino do que nos últimos dois dos seus seis grandes contrastes entre as distorções dos fariseus e a vontade de Deus (Mateus 5:38-48). Estas palavras têm agitado mais controvérsia do que todo o resto do sermão junto, e muitos esforços para explicá-las têm servido apenas para invalidá-las e despojá-las de toda a força. Talvez fosse de alguma ajuda como uma introdução ao ensinamento de Jesus sobre o amor aos próprios inimigos examinar algumas controvérsias que as circundaram.

Tem havido ampla discordância sobre quão larga aplicação do princípio do amor ao próximo deveria ser feita. Uns dizem que ele se aplica apenas às relações "pessoais" e outros têm argumentado que ele tem que se aplicar a todas as facetas da vida do cristão. Em apoio da visão predominante, que estreita a aplicação às relações "um-a-um", Carl F. H. Henry escreveu o seguinte: "Nos círculos de comerciantes cristãos, diz-se freqüentemente que o Sermão da Montanha é o código de ética superlativo para o sucesso nos negócios. 


Mas o fato é que um grande homem de negócios, que conduz seu comércio pela ética do Sermão: Dando duas vestimentas de graça quando uma é pedida, não resistindo à violência, muito cedo se encontraria endividado sem esperança ou completamente fora do negócio . . . Uma nação que toca seus assuntos pela lei das relações com o próximo: agindo somente pelo princípio do amor não correspondido, dando duas vezes mais do que seus inimigos exigem e empenhada na não-resistência às agressões contra ela, está em processo de suicídio nacional" (Ética Pessoal Cristã, pags. 322-323).

Dietrich Bonhoeffer exprime a visão oposta em seu livreto O Custo do Discipulado: "Este dizer de Jesus retira a igreja da esfera da política e da lei. A igreja não deve ser uma comunidade nacional, como o velho Israel, mas uma comunidade de crentes sem laços políticos ou nacionais. O velho Israel foi ambos: o povo escolhido de Deus e uma comunidade nacional e era, portanto, sua vontade que eles enfrentassem a força com força. Mas com a igreja é diferente: ela tem abandonado o estado político e nacional e, portanto, tem que suportar pacientemente a agressão. . . . 


Mas esta distinção entre pessoa e função é totalmente estranha ao ensinamento de Jesus. Ele se dirige a seus discípulos como homens que deixaram tudo para segui-lo e o preceito da não-violência se aplica igualmente à vida privada e ao dever da função. Ele é o Senhor da vida, e exige fidelidade integral. Ainda mais, quando se chega à prática, esta distinção levanta dificuldades insolúveis. É possível agir só como um indivíduo, ou só como um funcionário? Não sou sempre um indivíduo, face a face com Jesus, mesmo no desempenho de meus deveres funcionais?" (páginas 121-124).

Aplica-se o princípio do amor a cada aspecto da convivência dos cristãos com os outros ou é ele limitado a certos tratos pessoais somente? Esta é uma questão que tem sido levantada freqüentemente, através dos séculos, e é aquela com a qual o cidadão do reino tem que lutar e decidir. Não há como fugir deste assunto tão prático.

Algumas questões também têm sido levantadas sobre se ao cristão é proibido todo direito de defesa própria em relacionamentos pessoais ou se lhe é exigido submeter-se ao mal somente quando atacado ou maltratado pelo evangelho. Martinho Lutero tinha alguns comentários interessantes sobre este assunto, em suas Conversas à Mesa: "Se alguém penetra em minha casa, tenta fazer violência contra minha família ou a mim mesmo ou causar dano, estou obrigado a defender-me e a eles, em minha condição de dono da casa e chefe da família. Se salteadores ou assassinos tivessem tentado ferir-me ou fazer-me violência injusta, eu teria me defendido e resistido a eles, em nome do príncipe do qual sou súdito. . . . Tenho que ajudar o príncipe a expurgar seu país de maus súditos. E se eu tiver a força para cortar o pescoço deste bandido, é meu dever meter a faca nele. . . . Mas se eu for atacado por causa da palavra divina, em minha condição de pregador, então eu tenho que suportar isso e deixar a Deus puni-lo e vingar-me."

Tudo isto deveria ajudar-nos a ver que temos algumas questões difíceis com as quais lutar, em nosso esforço para entender a verdadeira exigência da justiça do reino. E enquanto lutamos sinceramente para entender e aplicar estes ensinamentos desafiadores temos que guardarmo-nos constantemente contra a tentação de simplesmente raciocinar para afastar qualquer coisa que pareça opressiva e não atrativa. 


Não podemos menosprezar os ensinamentos de nosso Senhor meramente porque parecem revolucionários. É claro que jamais houve um mestre na história humana mais em desavença com tudo o que os homens, em sua sabedoria, pensaram ser justo, do que Jesus de Nazaré.


19. "Não Resistais ao Perverso"


"Não resistais ao perverso" (Mateus 5:39). Ainda que muita controvérsia cerque esta parte do Sermão, nossa primeira tarefa é deixar de lado as conclusões e tentar entender, na sua forma mais elementar, o ponto que Jesus diz.

Em Mateus 5:38-42, Jesus alarga o escopo e aprofunda a aplicação do princípio do amor ao próximo. Ele agora passou do trato com o problema do mal em nós mesmos para o desafio de lutar contra o mal nos outros. Uma coisa é para o cidadão do reino negar toda a injúria do inocente, mas o que o amor exige dele quando outros, longe de serem inocentes, tentam maltratá-lo e injuriá-lo?

Os fariseus tinham solucionado o problema lindamente. Eles simplesmente pegaram um estatuto do Velho Testamento, regulando a quantidade da compensação que poderia ser imposta pela lei por uma certa injúria cometida e o transformaram em um direito à vingança contra os seus adversários.

O propósito da lei de represália do Velho Testamento tinha, provavelmente, dois lados. Era destinada a restringir e impedir a prática do mal (Deuteronômio 19:20-21). Ela, também, servia para refrear a disposição dos homens a cobrar com raiva uma punição em desproporção com a injúria sofrida (Êxodo 21:23-24). A ira contra uma injustiça sofrida pode facilmente inflamar-se desenfreadamente e extorquir uma punição totalmente exorbitante.


 A lei de Deus para Israel pretendia que tais excessos, que somente iniciam um círculo vicioso de ódio e violência, fossem coibidos. É também muito importante notar que esta justiça não era para ser aplicada privadamente, mas imposta somente pelos juízes nomeados de Israel (Deuteronômio 19:18).

Os fariseus, evidentemente, viram nas palavras da lei, que eles muitas vezes citavam ("olho por olho, dente por dente"), um direito pessoal à vingança. Em vez de entender isto como uma declaração do castigo máximo possível sob a lei, um freio aos excessos, eles o tomaram como seu mínimo direito pessoal.

Em contraste com o ensinamento dos fariseus, que estabeleceu o direito à vingança pessoal e à retaliação à altura, Jesus diz, "Não resistais ao perverso." Ele, então, segue sua declaração de princípio com quatro ilustrações muito dramáticas.

É imperativo que, logo de saída, consideremos a proibição de Jesus (contra resistir ao mal) no contexto de seu Sermão e, até um certo ponto, no contexto mais amplo do Novo Testamento. A preocupação de Jesus em toda esta parte (5:21-48) é a elaboração do princípio do amor aos outros. No relato de Lucas do Sermão da Montanha, as ilustrações de Jesus de seu princípio são precedidas pelo mandamento para amar aos próprios inimigos e seguidas pela admoestação, "Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles" (6:27-31). Talvez isto nos ajude a entender que o Senhor não está emitindo uma doutrina de mera não-resistência mas, simplesmente, usando uma série de declarações muito impressionantes para acentuar nossa obrigação de nunca revidar os males que nos forem feitos, e nunca negar o bem àqueles que nos injuriaram injustamente. Não devemos tirar estas declarações do contexto.

Quando Jesus instrui seus discípulos para não resistirem ao mal, ele não está lhes dizendo para nunca fazer alguma coisa para restringir o mal em outros. Tal interpretação literal preveniria até uma palavra de reprovação. 


O Senhor ensinou diferentemente em Mateus 18:15-17 e ele mesmo repreendeu o soldado que injustamente o feriu durante o seu julgamento (João 18:23). O que interessa ao Senhor nestes versículos é que nunca deveríamos resistir ao mal com o mal. É exatamente assim que Paulo afirma o princípio, em Romanos: "Não torneis a ninguém mal por mal. . . . Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem" (12:17-21). Este é o resultado natural do mandamento para amar ao próximo como a si mesmo e ao apelo para fazer aos outros o que faríamos a nós mesmos. 

O que fizermos em resposta ao mal deles tem que ser feito com amor por eles, não com algum desejo de vingança ou preocupação em defender a si mesmo. Parece-me que este princípio não excluiria até mesmo o uso de alguma forma mais vigorosa para restringir outrem de infligir injúria injusta, mas isso tem que ser ministrado por amor ao ofensor e nunca por egoísmo ou vingança.

Assim, nestas acentuadas e dramáticas declarações de Jesus, nas quais ele certamente prendeu nossa atenção, ele está a nos dizer: que é melhor voltar a outra face à pessoa que nos agrediu, do que fazer mal a ela; que é melhor dar nossa capa ao homem que injustamente nos processou por nosso casaco, do que lesá-lo ou reter-lhe o que ele realmente necessita; que é melhor andar duas milhas com o homem que injustamente nos compeliu a prestar-lhe ajuda em uma, do que fazer-lhe mal ou deixar de dar a assistência que ele verdadeiramente necessita; que é melhor dar ajuda ao homem que nos tratou mal, do que reter o que ele, na verdade, requer no seu momento de dificuldade.

Se isto lhe soar como se estivêssemos exaurindo a força destes mandamentos, por favor, lembre-se que aquela instrução de Jesus, "dá-lhe o que pedes" não é ilimitado. Paulo disse, "Se alguém não quer trabalhar . . ." (2 Tessalonicences 3:10). Entretanto, até mesmo a exortação de Paulo não é punitiva, mas motivada por amor. Lembre-se, também, que teremos mais do que o suficiente para desafiar-nos a manter nossos corações livres de todo o egoísmo quando determinamos como devemos tratar com amor aqueles que se portam injustamente, e muitas vezes brutalmente conosco.

20. O Mandamento Inconcebível (Mateus 5:43-48)

A cada nova sentença, avançando desde o versículo 21, Jesus tem arrancado fora um pedaço cada vez maior do ego humano. Cada novo confronto entre as populares perversões farisaicas e a real exigência da justiça do reino serviu para elevar o desafio moral. O que o Senhor afinal ordena na sexta e última destas antíteses haveria de ter atordoado seus ouvintes. Ele tinha falado o inconcebível quando disse, "Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos" (5:44). Para muitos dos seus ouvintes, tal conselho deveria de ter parecido não somente inconcebível, mas impossível! S E o contrário do próprio conceito de justiça.

Agora, pela primeira vez no Sermão, Jesus falou a palavra que melhor resume o princípio fundamental de toda a sua mensagem. Ele conduziu seus ouvintes por um plano ascendente desde aquilo que o amor proibe no trato com outrem (mesmo aqueles que nos maltratam) até aquilo que o amor positivamente exige de nós. E quem, no meio de seus ouvintes, naquela ocasião como agora, poderia ter previsto que a jornada não estaria terminada até que ele exigisse deles a coisa mais dura de todas, que é amar justamente aqueles que temos maior disposição para odiar: nossos inimigos. Finalmente, o Senhor não deixou nenhum espaço para o "eu".

"Inimigo" estava longe de ser uma palavra estranha aos judeus do primeiro século. Ao tempo de Jesus havia uma inimizade palpável que se havia ligado à parede da separação que era a lei (Efésios 2:14-15). O povo de Israel tinha sofrido muito de um mundo hostil e muitas vezes olhou com desdém sobre o paganismo ignorante e a egrégia imoralidade dos gentios. Estes não demoraram a retribuir o favor. 


Os fariseus, com o seu fervor separatista, não eram ignorantes da exigência da lei, que os filhos da aliança tinham que amar seus próximos como a si mesmos (Levítico 19:18), mas eles entendiam que essa obrigação terminava nas fronteiras de Israel. Havia muitas pessoas para odiar, do lado de fora dos seus limites e muitos da nação sustentavam que não era só seu privilégio, mas também sua obrigação fazer assim. O fato que os fariseus estavam cientes do mandamento para amar, mas tropeçaram na definição de "próximo", é evidenciado pela conversa com um certo advogado (Lucas 10:25-29). O advogado conhecia a fórmula, mas estava ainda por fazer uma aplicação adequada.

Mas como e por que os mestres de Israel chegaram a concluir que a lei ordenava o ódio ao inimigo? Poderia ter sido as "guerras santas" de extermínio que Deus ordenou que Israel fizesse contra os cananeus (Deuteronômio 20:16-18), ou os salmos imprecativos ("Não aborreço eu, Senhor, os que te aborrecem? . . . Aborreço-os com ódio consumado: para mim são inimigos de fato" Salmo 139:21-22. Note especialmente o Salmo 109). Entretanto, ainda que difícil e desconcertante seja o problema que estes fatos apresentam, a lei não distinguia, em matéria de amor ao próximo, entre o israelita e o estrangeiro (Levítico 19:18 com 19:33-34) e não aconselhava a vingança e o ódio ao inimigo (Êxodo 23:4-5). Mesmo Jó, cujo tempo provavelmente antecede a lei, entendeu o pecado de se regozijar com a calamidade sobre um inimigo (Jó 31:29-30). 


Sempre me impressionou que, quando Paulo procurou instruir seus irmãos no tratamento dos inimigos, não sentiu nenhuma necessidade de alguma nova revelação, mas tirou facilmente do livro de Provérbios: "Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber" (Romanos 12:20; Provérbios 25:21). Não há parcela do Velho Testamento que mais diretamente aborde o problema da atitude de Israel para com os inimigos do que o livro de Jonas. Os assírios eram um povo brutal, inimigos de Deus e dos homens, mas Jeová os amava e pretendia que seu servo Jonas fizesse o mesmo (4:9-11).

Ainda, se depois disto tudo, achamos difícil acreditar que a lei não aconselhou inimizade para com os inimigos, resta-nos confiar no Filho de Deus, que reprova esta idéia como uma concepção errônea da lei, e totalmente inconsistente com a natureza e o propósito de Deus. Foi justo um ensinamento como este que fez a nação tão despreparada para a vinda do reino pacífico.

Tivesse Jesus dito aos seus seguidores para amarem seu "próximo", eles bem poderiam ter continuado nos mesmos velhos e estreitos caminhos, errando completamente a natureza única deste amor. Mas, quando ele lhes ensina a amar seus inimigos, eles podem ficar surpresos, mas ficarão, com certeza, instruídos. 


Como Kierkegaard observou, o evangelho tornou impossível, para sempre, que alguém se engane a respeito da identidade de seu próximo. Se temos que amar nossos inimigos, então não haverá nenhum membro da raça humana, ainda que diferente, ainda que distante, ainda que desprezível, a quem não deveremos o melhor que lhe pudermos dar.
Estudos Bíblicos -Jesus abre o coração do seu discurso sobre a verdadeira justiça.